Doenças raras
O Simpósio sobre Doenças Raras, realizado pela AFSD – Cavalo Azul, com intervenções marcadas pela experiência, sensibilidade e sabedoria do Dr. João Viegas e da Dr.ª Luísa Diogo, ajudou a esclarecer o que são doenças raras e a situação das famílias com filhos com doenças raras.
Seguiram-se quatro testemunhos de familiares, dois de duas irmãs de jovens com doenças raras, e dois de mães.
Testemunhos bem diferentes, marcados pelas idades, talvez mais pelas vivências dos intervenientes.
As mães deixaram as suas preocupações, as suas incertezas, os medos que as acompanham e que estão para continuar pela vida, sempre com o pensamento nos filhos, filhos que precisam dos cuidados permanentes, sem autonomia para uma vida independente.
Já os testemunhos das irmãs de jovens com doenças raras deixaram entender que não carregam o passado dos seus irmãos, nem as preocupações que o futuro lhes possa pedir, deram uma descontraída visão de seus irmãos, sem sinais de medos e preocupações do futuro.
Fiquei a pensar no significado de tão diferentes testemunhos e se os pais daquelas irmãs de jovens com deficiência se sentiriam representados nas intervenções das suas filhas, que falaram de irmãos sem autonomia.
Desci aos anos da infância do meu Tiago, quando andava por mim a vontade de um irmão ou irmã para o Tiago. Um irmão seria poupado, a vida ser-lhe-ia facilitada, todos os seus sonhos seriam apoiados. Os sacrifícios, as privações, as canseiras continuariam a ser dos pais, para assim aliviar, no que fosse possível, o irmão ou irmã, da herança de um irmão sem autonomia para vida independente, mesmo que isso fosse um redobrar de trabalhos.
Aquelas intervenções caíram bem naquele Simpósio. Fiquei a pensar se podem tipificar o sentir de irmãos. Ou se deixaram a impressão de que as intervenções das mães foram lamentações mórbidas.
Dei uma volta pelas leituras que fazem a minha experiência, o meu modo de ver e de julgar estas situações.
Voltei ao livro “O meu irmão”, narrativa que desenvolve episódios da vida de dois irmãos, o Miguel com Trissomia21, com comportamentos e entendimento de criança, sem autonomia para uma vida independente.
O relacionamento entre os dois irmãos está marcado pela dedicação. Também por momentos de irritação, de saturação e cansaço. Também por episódios de violência, porque o Miguel não compreende e deixa-se enredar obsessivamente por situações desastradas.
O júri do Prémio Leya observou que o livro trata a realidade de forma “objectiva e com a violência que estas situações humanas podem desenvolver, obrigando a uma leitura que nos confronta com a dificuldade de um mundo impiedoso”.
O narrador dá a palavra ao seu pai: “Quando se é velho e pai de um deficiente, aprende-se a lidar com o medo. Quando eu for ainda mais velho, que será feito do meu filho? E quando eu morrer? E quando ele se tornar velho e eu já não existir? Este medo será com certeza constituído por muitos outros”.
E o narrador: “Os meus pais já haviam ultrapassado os oitenta anos e o medo acompanhava-os no quotidiano, não o medo por si, mas o medo pelo Miguel”, porque “só o Miguel os preocupava”. O Miguel, já próximo dos 50 anos, mas com entendimento de criança.
E a narrativa de Kenzaburo, prémio Nobel da literatura, quando uma irmã responde aos pais, que se tivesse de casar levava o seu irmão consigo, irmão com deficiência mental. Os pais ironizaram com a situação, perguntando o que diria um jovem esposo ao ver um tal presente que a noiva lhe levava.
Um futuro incerto domina os pensamentos daquela irmã, são dificuldades e medos de quem tem ao seu cuidado um irmão sem autonomia para uma vida independente.
Sob uma “grande tensão nervosa”, sentia-se na vida “sozinha num local isolado, sem ninguém, com um sentimento de vacuidade infinita, triste”.
Teve um sonho de noiva perdida num lugar deserto, sem haver sinal de noivo. Ao seu lado estava o seu irmão, que sentia o mesmo que ela.
Duas leituras, dois contributos para tipificar o sentir de irmãos com irmãos sem autonomia para uma vida independente.